“Eu sou um caçador de heróis. Eu caço heróis. Até hoje eu não encontrei nenhum”.
– Marshal Law, Marshal Law: Fear and Loathing#1.
Quando se lê quadrinhos de super-heróis por muito tempo, principalmente o mainstream (DC e Marvel, no geral) a tendência é que a gente, leitor, perca um pouco do referencial transgressor o qual os gibis podem ter. Apesar de quadrinhos de super-heróis serem, normalmente, conteúdo focado exclusivamente em entretenimento, há neles um espaço para uma abordagem provocativa e que fora explorada amplamente no passado. Marshal Law me fez lembrar disso.
Lançado e publicado em 1987 em seis edições, inicialmente pela Epic Comics, subselo de títulos adultos da Marvel Comics, e posteriormente por diversas outras editoras com outras histórias, o quadrinho, escrito pelo excelente Pat Mills (Sláine), criador da emblemática revista 2000 AD, e com arte do censurado Kevin O’Neill (A Liga Extraordinária), é em primeiro grau uma simples sátira do gênero de super-heróis, entretanto sua interpretação vai muito além. Cabe destacar que entre meados da década de 80 e o começo dos anos 90, o mercado de quadrinhos americanos passou pela chamada invasão britânica e consequentemente a explosão de títulos que buscavam desconstruir o gênero de super-heróis, como Miracleman (Alan Moore) e Esquadrão Supremo (Mark Gruenwald e Paul Ryan) e, obviamente, os títulos com maior destaque como Watchmen (Alan Moore e Dave Gibbons) e Cavaleiro das Trevas (Frank Miller). Marshal Law viria a ser publicado somente um ano após o magnum opus do Mago das Histórias, trazendo aos leitores uma espécie de intermediário entre Juiz Dredd e Cavaleiro das Trevas, carregado pelo espírito transgressor da década 70 e sob o olhar da desconstrução da década de 80.
Marshal Law talvez não tenha o prestígio, o renome ou mesmo o caráter seminal como seus títulos-irmãos da mesma época, podendo ser considerando um trabalho secundário, entretanto o quadrinho é claramente um clássico e deveria ser lembrado como tal sempre que possível.
O quadrinho título desta análise posteriormente viria a ser a principal inspiração para o hoje conhecido The Boys (Garth Ennis), publicado entre 2006 e 2012, e sucesso por sua adaptação pela Amazon Prime. Entretanto conhecer Marshal Law expande e propicia uma compreensão ainda maior sobre a obra de Garth Ennis, o que não exatamente é algo positivo. Todos os elementos estão ali, super-seres nada heróicos e completamente imorais, o abuso de poder, críticas ao neoliberalismo e ao nazifascismo, a ultraviolência, etc. Contudo, e traçando um comparativo, a obra do autor irlandês começa a parecer um discurso raso de adolescente revoltado com o sistema, enquanto Marshal Law parece tirar sua força narrativa justamente do apelo em contar uma história própria bem como as indignações reais tanto do autor quanto seu artista.
Sobre o que é Marshal Law?
“Se Watchmen de alguma forma matou o super-herói – o que é uma constatação duvidosa – então Marshal Law levou isso adiante com esse maravilhoso ato de necrofilia, onde degradou o cadáver de uma maneira realmente divertida. Eu acho isso ótimo… Pat e Kevin fazem isso tão bem, com tanto estilo e com uma malícia tão óbvia; essa é a coisa divertida sobre Marshal Law. Eles não estão apenas brincando, eles realmente odeiam super-heróis.”
— Alan Moore, The Comics Journal #138
O personagem-título, Marshal Law, é um “caçador de super-heróis” sancionado pelo governo (também conhecido como policial ou “assassino de capa”) com superpoderes na cidade de São Futuro, a metrópole construída a partir das ruínas de São Francisco após um grande terremoto. O trabalho de Law é derrubar outros super-heróis que se tornaram desonestos, o que ele faz com brutalidade e grande prazer. Com a ajuda de seu assistente Danny e seu parceiro fisicamente imponente, mas extremamente educado, Kiloton, Marshal opera a partir de uma delegacia de polícia secreta escondida abaixo da cidade, agindo de forma truculenta o suficiente para manter as muitas gangues superpoderosas da cidade apaziguadas. O enredo da série original em seis edições gira em torno das tentativas de Marshal Law em tentar desmascarar o Hibernante (Sleepman), um assassino em série e estuprador que ataca mulheres vestidas como a sereia Celeste, a atual namorada do amado e maior super-herói do mundo, Espírito Público (Public Spirit). Marshal Law é o alter ego de Joe Gilmore, um ex-super-soldado consumido pelo ódio de si mesmo por ser um super-herói. Neste mundo, super-heróis são comuns graças à engenharia genética, em grande parte das forças armadas dos Estados Unidos. No entanto, enquanto seus corpos podem se tornar superpoderosos, suas mentes permanecem exatamente como eram e, em muitos casos, a incapacidade de sentir dor faz com que os sujeitos compensem infligindo dor aos outros.
Desde o início, Marshal Law adota uma abordagem diferente de outras obras correlatas e em parte pode ser considerado um precedente a muito do que viria nos anos posteriores. É importante entender que a referência de uma grande obra não é simplesmente a soma de suas partes, mas também a forma como afetou o gênero. O impacto de Marshal Law pode ser visto na estrutura de inúmeros quadrinhos que são extremamente familiares nos dias de hoje, como o já citado The Boys, porém podemos ver também sua influência em trabalhos como Transmetropolitan (Warren Ellis), Kick-Ass (Mark Millar), e Stormwatch: Team Achilles (Micah Ian Wright). O que é essencial lembrar é que, como V de Vingança, Watchmen, Cavaleiro das Trevas, Cavaleiro das Trevas: O Retorno, a abordagem em Marshal Law é muito mais próxima de uma ficção científica distópica, contudo ambientado em um plano onde super-heróis não são apenas comuns como são pilares do modelo de sociedade desenvolvido. Na época, este era um território relativamente novo, com uma escrita desafiadora, conflituosa e intensa, inicialmente não fica claro se esse tipo de conteúdo ainda possuía um público definido, contudo com o passar dos anos a obra passou por um revisionismo e conseguiu alcançar parcialmente o reconhecimento devido. Deve-se entender que a bravura desse tipo de criação nos quadrinhos deve ser equilibrada por um profundo desejo de contar tal história, uma vez que quando uma obra é negligenciada pelo público, o apelo de poucos fãs pode não ser necessário para insistir em uma publicação, e no caso em questão, se não fosse pela força própria de seus criadores, Mills e O’Neill certamente teriam tomado um caminho mais fácil.
Como os heróis cuja beleza e talento não são prejudicados por seu crescimento contínuo, os quadrinhos mais conceituados são aqueles que tiveram a graça de impressionar, assustar, irritar e parar de fazer as perguntas mais difíceis nos momentos necessários. Ao contrário de outras séries limitadas da mesma época, ideias e conceitos totalmente distorcidos e subversivos são apresentados, ridicularizados e por fim dispensados, Marshal Law deve inevitavelmente continuar a luta contra o errado. Isso é certo e apropriado, pois a história é a de um guerreiro que nunca descansará até terminar seu trabalho intragável. Como na vida, não há final feliz, nem amarrar as pontas soltas. Em vez disso, há apenas a geração interminável de uma sociedade quebrada produzindo os chamados super-heróis doentes, e Marshal Law está lá para combatê-los. É essa evolução da história, essa necessidade de continuar mexendo na ferida que torna difícil para alguns pegar e adorar.
Não é simplesmente uma boa história com uma nova identidade que se propõe a desconstruir o gênero, abusando da ultraviolência, é um repensar inteiro da mitologia dos super-heróis e da opinião popular. Não há fim.
O texto de Pat Mills é sádico, afiado, subversivo e completamente crítico, mas não é apenas em seu texto que Marshal Law brilha, a arte de Kevin O’Neill torna a obra brilhante, acrescentando a nuance necessária para sua devida interpretação. A figura do austero e niilista Marshal Law é representada através de um estereótipo do policial fascista e com um uniforme que o reduz a uma analogia aos uniformes nazistas ao mesmo tempo que o ironiza remetendo a uma figura sadomasoquista. O personagem é claramente baseado em Juiz Dredd (também creditado ao autor Pat Mills como cocriador), contudo seu desenvolvimento possui toda uma estrutura própria representando uma resistência em um mundo de super-seres devassos e autoritários. O personagem é completamente consciente de seu papel nesse mundo e aceita os pormenores de sua função, não agindo como um justiceiro solitário. Ao entender seu papel e sua posição nessa sociedade maniqueísta, Marshal age dentro do que entende moral e em sua busca convicta por super-heróis.
A arte agressiva do Kevin O’Neill, que por vezes remete a Frank Miller, acrescenta demais a narrativa tornando uma leitura suja daquele mundo. O artista, um parceiro de longa data tanto ao Pat Mills quanto ao Alan Moore, é exímio em retratar a imundice daquela realidade. Marshal Law possui um uniforme carregado de informações que serve de símbolo, tanto por sua postura irascível quanto pelo senso humor britânico que o torna uma amálgama do ridículo e do soturno.
Nem toda mídia que consumimos precisa ter essa obrigação, nem todo quadrinho precisa provocar reflexão ou nos tirar da zona de conforto, mas quando encontramos uma obra que nos coloca numa posição de vermos o mundo um pouco menos preto no branco, a sensação de crescimento é inevitável, Marshal Law foi isso pra mim. A voz de Pat Mills e Kevin O’Neill em Marshal Law ainda ecoa, suas críticas ainda são aplicáveis a sociedade atual mesmo cerca de 35 anos depois. A história pode parecer, assim como inúmeras outras, a tentativa de dois artistas em satisfazer o desejo distorcido de uma justiça deturpada sobre aqueles que considerarem vilões. Não há outra esperança e não há mais poder do que este destrutivo ímpeto, e para a Marshal Law isso é suficiente.
Que matéria legal! Parabéns!
Muito obrigado!
Excelente artigo, Pablo. Marshal Law tornou-se referência ao arquétipo do anti-heroísmo.
Valeu cara!