Uma jornada em busca de si mesmo e do pertencimento
Anunciado como a primeira Graphic Novel original da Comix Zone, Corso é uma ópera espacial que mistura aventura e ficção científica, uma história que apesar de tratar sobre rivalidade entre cães e gatos, transita entre outras temáticas que ganham peso, beleza e complexidade com muitas camadas a serem observadas. Escrita por Danilo Beyruth, a graphic novel foi lançada em 2022.
Como dito previamente na introdução, essa é uma história de rivalidade de raças, cães versus gatos, em que o personagem principal é um cachorro. O que talvez seja algo mais interessante nessa história é como as características comuns às raças são aplicadas no psicológico e personalidade, como no caso do Corso, que estão presentes a fidelidade e a obediência, apesar de ter resquícios de uma certa rebeldia, mas que só se manifesta pela fidelidade a si mesmo e as suas convicções ou meramente pelo ego.
Corso é um daqueles personagens ambíguos que amamos e, ao mesmo tempo, odiamos e que nos conduz a reflexão imposta pela natureza dos pensamentos e ações do personagem – nessa história o autor deixa margens para que os leitores possam exercer uma leitura ativa e crítica entre lacunas propositais, permitindo que o leitor tire as suas conclusões e links como no caso da escolha dos nomes dos felinos na história que possuem referências em lendas, deuses egípcios e até mesmo traz inspiração em um monge budista tailandês.
Talvez a sacada mais fascinante seja a habilidade de trazer de forma sútil a beleza do que é considerado primitivo e o uso de simbolismos.
Simbolismos – Atravessando os portais
Parafraseando Joseph Campbell – A aventura é, sempre em todos os lugares, uma passagem pelo véu que separa o conhecido do desconhecido¹ e aqui a jornada começa quando Corso cai com a sua nave em um planeta estranho, implicando a ele a luta pela sobrevivência e o início de uma aventura. Aqui marca a primeira passagem de limiar/portal – Corso está dentro da “barriga da baleia” da qual precisa sair.
Um planeta desconhecido. Uma terra distante da sua e fora da sua realidade, aqui os preconceitos precisam ser abandonados – beleza e feiura, bem e mal, certo e errado, precisaram ficar de lado para que o herói possa atravessar as portas e retornar ao mundo. Mas a jornada do herói guarda as suas provações e tudo o que resta nesse momento é a visão de mundo que lhe foi transmitida através de seu treinamento … treinamento esse que acaba instaurando preconceitos, que ensina a guerrear em nome de uma causa sem motivo revelado contra a monarquia dos gatos. É através da jornada que o destino do herói é moldado e junto dele o seu caráter, é necessário passar pelo fogo, Corso precisa se perder para se encontrar – Morrer para então renascer.
A metamorfose – “Tendo cruzado o limiar, o herói caminha por uma paisagem onírica povoada por formas curiosamente fluidas e ambíguas, na qual deve sobreviver a uma sucessão de provas”² a frase casa perfeitamente com a imagem do segundo portal, e claro com tudo o que precisará acontecer – É o momento de adentrar mais fundo nesse universo desconhecido e de explorar o próprio universo – o mergulho dentro de si, abandonar o ego e o “racional” o que significou para o Corso adotar práticas que julgara inconsistentes e até impraticáveis trazendo mudanças drásticas no personagem – Ser e pertencer sofrem alterações e reviravoltas, contornos são lançados diante da luz dos acontecimentos.
No decorrer da história ainda temos três portais presentes nos quadros seguintes, que marcam as mudanças evidenciadas pelo personagem até que ele retorne para o seu mundo. Gostaria de falar mais sobre os portais e dos impactos que eles representam, mas fazer isso privaria o leitor da própria experiência e da co-participação na significação dos símbolos dessa jornada.
Cultura | Religião | Inspiração
Dois pontos nessa história mudaram a minha visão e me fizeram analisá-la de forma diferente, a presença de portais citadas acima e o nome de duas felinas – Biaset e Sekhmet que me remetaram a uma jornada além-texto (ou quadrinho rs.) através da cultura egípcia e que sim estabelece um elo importante com a história. Biaset me trouxe um click, o nome da deusa antropomórfica do Egito Bastet representada com um como humano e a cabeça de um felino. Bastet traz atrelada a si dois aspectos complementares: o pacífico e protetor, e o perigoso. Ela era identificada como a deusa da proteção da saúde individual, dos lares e da fertilidade, o aspecto encontrado em Biaset envolveu o cuidado e o zelo pela saúde de Corso, me levando a crer que não foi por acaso.
Outro ponto importante que não deve ser ignorado é a relação de Bastet que “Ao longo da história foi associada a outras deusas como Hathor*, Sekhmet e Tefnut demonstrando que as divindades egípcias não tinham um papel único e poderiam, ao longo do tempo, assumir funções e formas diversas” relação essa que pelos nomes citados deu para perceber que Danilo Beyruth manteve através de Sekhmet e Tefnut, sendo a primeira uma guerreira que se destaca e a segunda a líder que guia o povo e estabelece a ordem, mantém princípios milenares e culturais, Tefnut da mitologia egípcia é descrita como “uma das divindades mais antigas e importantes, sendo uma deusa da água e da umidade em uma civilização do deserto. Era a protetora do povo.”
Beyruth não se manteve apenas na cultura egípcia, o nome Palug, está presente em mitos e lendas francesas e gaulesas sob o nome de Cath Palug – seu nome possui traduções derivadas, sendo “gato de Palug” e “gato das unhas afiadas” aceitas. Ele é descrito como “uma espécie de gato preto gigante… Horrendo e monstruoso”, o Palug de Danilo possui a mesma ferocidade apesar de não ser horrendo ou completamente preto, vemos o cuidado de Danilo para tentar trazer essa conexão com os personagens da sua história e suas inspirações, assim como Tefnut que possui as orelhas pontudas características de suas lendas.
Quanto ao Monge Somdej, talvez não surpreenda que a inspiração tenha vindo de um famoso monge budista tailandês durante o reino de Rattanakosin conhecido por Somdej Toh.
Nomes dos personagens
Sekmet
Tefnut
Biaset
Monge Somdej
Palug
Corso é uma mistura surpreendente e única de coisas que só foram possíveis através da genialidade de Danilo Beyruth, isso não quer dizer que seja perfeita, mas é uma obra que possui uma capacidade enorme para o encanto e a imersão e uma riqueza de detalhes que fizeram meu coração de leitora e devota de pesquisas saltarem de alegria. Uma exploração no universo de Corso acabou sendo uma exploração por civilizações distantes e uma jornada interna, claro que tudo o que foi apreendido nessa leitura não couberam aqui e jamais poderiam. Quanto a você caro leitor, espero que dê uma chance a essa viagem e antes de tudo se divirta.
Quanto ao Sr. Danilo Beyruth, obrigado pela experiência e sim, gostaria de mais desse universo (quem sabe um volume 2).
Notas:
Hathor não é mencionado no quadrinho como um personagem, quem completa a tríade é Monge Somdej. Porém, Hathor é descrita como deusa dos céus e auxiliar na passagem das almas para uma nova vida. Como uma ópera espacial, os céus aqui estão presentes e é o responsável pela jornada de Corso rumo ao seu destino e de certa forma “nova vida”.
Fontes:
Bastet: http://museuegipcioerosacruz.org.br/a-deusa-bastet/
Sekmet: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sacmis#:~:text=Sacmis%20ou%20Sequemete%20(Sekhmet)%2C,como%20o%20seu%20principal%20poder.
Tefnut: https://www.mitoselendas.com.br/2021/08/tefnut-deusa-egipcia-da-agua-e-da.html
Cath palug: https://portal-dos-mitos.blogspot.com/2022/01/cath-palug.html
Monge Somdej: https://pt.wikipedia.org/wiki/Somdej_Toh
Corso: Dicionario de Oxford