Em fevereiro de 2022 a editora Pipoca e Nanquim publicou o título francês Celestia. Trata-se de mais uma HQ europeia, dos mais de cem títulos já lançados pelo trio.
Como é de praxe, o lançamento dividiu opiniões: uns odiaram a ponto de postar textão no campo de avaliação da Amazon; outros elogiaram e saíram em defesa do último filho de Manuele Fior. Diferentemente do mercado estadunidense de quadrinhos (Comics), o europeu (Banda Desenhada) funciona sob uma outra ótica. Culturalmente falando, a forma com que produzem e enxergam o universo da 9ª arte é completamente diferente. Pode-se dizer que lá o status de arte realmente faz jus ao que é produzido.
Mas do que se trata a obra? Muito se discutiu à época, sobre qual seria o real tema da obra. Seu início não-introdutório, seu desenvolvimento frenético e sua conclusão não totalmente concluída, fez com que muitos leitores questionassem a razão de ser dela. Já adianto que é difícil compreender não só a trama, mas a proposta da HQ em si. De início, não sabemos ao certo o que está acontecendo, nem o que aconteceu e nem para onde o enredo caminhará. É apresentado para os leitores as habilidades de algumas personagens, incluindo telepatia, e a ilha artificial de Celestia, lar de jovens superdotados — hã? —, orientados por um líder de viés professoral e… calvo — duplo “hã?”. Sim, a semelhança com o universo mutante da Marvel é gritante e não chamaria de “mera coincidência”. No entanto, essa referência não é explícita — talvez até nem exista — e depende muito da bagagem do leitor. Mas está lá!
A polêmica, entretanto, está na razão de ser da publicação, sobre o que ela realmente é e o que aborda. Celestia sofreu críticas, de leitores brasileiros, que alegavam que todo o enredo fazia sentido apenas na cabeça do autor, pois não há um começo e nem um final e todo o desenvolvimento não é explicado. Alguns personagens possuem habilidades obscuras, difíceis de serem entendidas. E em momento algum elas são explicadas. A trama também não informa para onde vai. Não conhecemos seu real objetivo e nem do que ela se trata. Mas mesmo assim, ela é instigante e enigmática.
As críticas carecem de fundamentação porque outros autores trabalharam de forma semelhante no passado e até hoje são ovacionados. Vamos aproveitar a volta da Conanmania ao Brasil como exemplo e citar Roberto E. Howard. Muitos dos contos originais de Conan não tem um começo e terminam de forma abrupta e reticente. Não conhecemos a origem dos personagens durante os contos e tão pouco suas motivações. Mas aceitamos de bom grado tudo que este grande escritor nos impõe. O mesmo vale para Robert Kirkman e sua criação máxima: Walking Dead. A série já terminou e continuamos sem saber de onde vem o vírus, o que ele era e porque foi criado. Mesmo assim, aceitamos tudo sem questionar.
A diferença entre Celestia e os dois exemplos citados é a de que o primeiro é um “one shot” e os outros dois uma publicação seriada. O tempo maior de duração permite aos leitores mais imersão e a possibilidade de se apegar aos personagens, sem contar o fato de que essas duas séries contam com um gigantesco merchandising e a expansão do universo para outras mídias (televisão, livros, spin-offs, jogos eletrônicos, entre outros).
Entretanto, o mundo criado por Fior tem sua própria coesão e depende de seu conhecimento para uma melhor contemplação, mas não é necessário para entendermos a obra em si. Em outras palavras, é perfeitamente possível compreender cada HQ isoladamente. As habilidades telepáticas presentes em Celestia são mencionadas, inicialmente, em uma obra anterior, A Entrevista. Outra obra, também anterior, Mil Quilômetros por Segundo, é referenciada visualmente nas páginas de Celestia. O autor se autorreferencia o tempo todo em suas publicações. O mérito de Fior está na narrativa, em como ele conduz toda a ação que leva de um ponto a outro, deixando-nos constantemente na expectativa, mas nunca correspondendo a ela — e isso não é ruim. Elogiar isso pode parecer estranho, mas é algo que o autor faz muito bem.
Outro ponto importante que vale a pena ser mencionado e que conta bastante para a trama, é a arte. Esse é outro aspecto que também deu margem para discussões. Os olhos levemente deformados e vidrados que os telepatas possuem e as feições caricatas e excessivamente expressivas da maioria são capazes de substituir diálogos e recordatórios maçantes, muito comuns nos comics estadunidenses. Sua habilidade em compor cenários é única. Eles são muito ricos e realistas, ao mesmo tempo em que apresentam uma estética exótica e surrealista na arquitetura, veículos e outros objetos menores. Sua técnica é muito mais próxima a Monet do que Dali, mas ele consegue casar esses dois estilos que, aparentemente, são opostos.
As credenciais do autor também são invejáveis: Manuele Fior é italiano, formado em Arquitetura em Veneza e, além de fazer quadrinhos na França, ele ilustra para as revistas New Yorker, Rolling Stone e Vanity Fair e para alguns jornais também. Sua formação e atuação diversificada no mercado editorial permite um estilo único de roteirizar e ilustrar. Apesar de indicar com veemência, reconheço que a obra não é para todo o tipo de público.
Primor!! Tinha ainda algumas dúvidas sobre do que se tratava Celestia, ficou mais clarone confuso agora! Haha muito bom, parabéns pela publicação!
Valeu, Monique! Acredito que vá gostar da obra 😉