Em agosto deste ano fazem 62 anos que Quarto de Despejo: Diário de uma favelada de Carolina Maria de Jesus, foi publicado (1960). Livro autobiográfico que narra sua vivência na favela do Canindé, como mãe, catadora de papel, escritora e poetisa.
Carolina foi uma figura importantíssima para a literatura do país, não apenas pela sua contribuição na literatura, mas por sua história de vida, que foi recontada não apenas no Brasil, mas também em 40 países e traduzida para 14 línguas. De todas as versões já publicadas, a história de Carolina ganhou também as páginas dos quadrinhos através da HQ “Carolina“, publicado pela Editora Veneta, por Sirlene Barbosa e João Pinheiro.
O quadrinho tem trechos do livro “Quarto de despejo”, e reconta a história de vida de Carolina, já na cidade de São Paulo, na favela do Canindé.
Nascida em Sacramento, Minas Gerais (1914-1977), a menina concluiu até a segunda série do ensino fundamental, com um coração cheio de sonhos e histórias para contar, decidiu que seria poeta. Ainda criança, sentia fortes dores de cabeça, ao consultar um médico espírita da cidade, o Dr. Eurípedes Barsanulfo informou à mãe que a menina não tinha nada, além de uma mente em turbilhão, com muitos pensamentos que deveria externar, o que reforçou ainda mais o seu sonho de escrever.
“Sua filha não tem nenhum problema na cabeça. Ela tem muitas ideias e terá que aprender a lidar com isso. A menina vai ser poetisa.”
Trecho Carolina, Editora Veneta 2016.
Ainda jovem deixou Sacramento (MG) para tentar a sorte na grande Metrópole de São Paulo, SP (1947). Chegou a morar embaixo do Viaduto do Chá, na Maloca. Conseguiu apoio, roupas e comida através de instituições de caridade. Com o tempo, conseguiu um emprego na casa do médico Euríclides Zerbini, onde teve mais acesso aos livros, que instigaram ainda mais o sonho da mulher de ser uma escritora um dia, mesmo com sua pouca escolaridade, seu intelecto era a sabedoria de vida.
Infelizmente, foi demitida (1948) quando engravidou de seu filho João José de Jesus, o que fez com que seu destino a levasse até a favela do Canindé. E foi lá (1950) que deu à luz aos seus outros dois filhos: José Carlos de Jesus e Vera Eunice de Jesus.
A vida precária, a fome, a subsistência na comunidade, fizeram Carolina conhecer a invisibilidade social, mas mesmo com todas dificuldades enfrentadas, Carolina persistiu e trabalhava de Sol a Sol, de chuva a chuva, com seus pés cansados, um fardo nas costas e uma esperança maior no coração.
Seus filhos ficavam em casa enquanto a mãe saía todos os dias para catar papel, latinha e qualquer coisa que pudesse vender para lhes garantir o sustento, mas a preocupação de uma mãe é o maior peso que pode carregar.
“Meu desejo sucumbir com as agruras da vida quando os filhos vem pedir mamãe! quero comida”
Trecho de “A vida escrita de Carolina de Jesus”, assinado por Elzira Divina Perpétua, baseado em sua tese de doutorado (2000).
Nota da redatora: É possível que algumas transcrições do quadrinho ou do livro de Carolina não contenham o português correto, pois foram conservadas sua forma de escrita, a fim de passar a mensagem da origem da autora, que apesar da grande sabedoria, não pôde completar seus estudos.
Carolina viveu dia após dia de forma valente, mesmo quando pensava em desistir. Enquanto andava pela cidade conseguia notar a discrepância entre a vida na comunidade, onde as pessoas apenas conheciam a miséria, fome e violência, e a vida na cidade, que parecia brilhar em vida, uma vida para poucos, para aqueles que não eram invisíveis perante a sociedade.
“Eu sou negra, a fome é amarela e dói muito.”
Revirando as ruas da cidade, em meio aos papéis, latinhas, comida passada, Carolina também buscava o que pudesse alimentar a alma: livros, revistas e jornais. Lia tudo o que caia em suas mãos, e no final do seu árduo dia, escrevia. Escrevia sobre sua vida, sobre a vida e as pessoas na comunidade, mesmo com suas mãos calejadas do trabalho, Carolina escrevia, ora os relatos de seu cotidiano diário, ora poemas, e até compunha músicas. Seu sonho era um dia ver seu nome na capa de um livro, como um dos muitos que se esforçava para ler.
“Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus ilustres cristais, seus tapetes de viludo, almofadas de sitim. Quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”
Trecho de “ Quarto de despejo”, 1960
O que antes pareciam ser apenas os devaneios de uma mulher sofrida e sonhadora, um dia se tornou luz diante de seus olhos, fazendo cruzar o seu caminho o repórter Audálio Dantas (1958), que havia conseguido convencer seu chefe, da Folha da Noite, a escrever uma matéria sobre a Favela do Canindé. O homem não pôde acreditar quando viu a mulher dizer em alto som sobre colocar as maldades dos moradores em seu livro. Ao encontrá-la, para sua surpresa, a mulher lhe mostrou mais de 20 cadernos, que continha em suas páginas precárias poesias, contos, provérbios, e um diário. Mal sabiam o quanto esse encontro mudaria suas vidas.
Audálio escreveu a matéria que repercutiu em todo o país, depois desse encontro marcado pelo destino, foram muitos meses atrás de uma editora que aceitasse publicar o livro com o diário de Carolina. Sua vida, enquanto esperava, continuava precária. A espera foi intensa, mas em agosto de 1960, “Quarto de despejo” foi publicado com uma tiragem inicial de 10 mil exemplares, e a vida de Carolina se transformou para sempre.
Muitos percalços ainda encontraram a vida da mulher, como a indignação dos moradores da comunidade, que se revoltaram por verem suas vidas expostas no livro de Carolina. Mesmo quando ela conseguiu tirar a família pobreza, finalmente podendo se mudar para uma casa de alvenaria em um bairro nobre, encontrou o descaso dos moradores do bairro “Chique” que ainda a consideravam uma pessoa que não pertencia aquele lugar, apesar de sua fama e grande notoriedade de seu livro em todo o país, vindo posteriormente a ganhar o mundo, uma história que foi recontada não apenas no Brasil, mas também em 40 países e traduzida para 13 línguas.
O quadrinho da Veneta, tem grande respeito pela história original, foi um incrível trabalho de pesquisa de Sirlene Barbosa, e o roteiro e arte de João Pinheiro, que merecem reverenciamento pelo resultado que atingiram. Ao final do quadrinho, temos ainda um material extra que complementa a história narrada aqui, em ordem cronológica, esse acréscimo nos apresenta um pouco de sua infância, sua vida em Sacramento, sua chegada em São Paulo, e suas publicações posteriores a “Quarto de Despejo”. Uma história linda sobre a dura realidade de um povo, e sobre superação.