“Meu pai, cujo nome não deixarei registrado aqui por não querer que se torne de conhecimento geral, não teve uma morte digna nem honrosa. Um criminoso, ladrão e mentiroso, que naquela época se identificava como Krem e dizia ter vindo dos Montes Amarelos, o esfaqueou com uma lâmina kopís. Krem havia chegado à nossa fazenda de rochas no dia anterior, pedindo por comida e abrigo, e recebeu ambos da minha família gentil e devota. De manhã, quando acordou, ele entrou em uma discussão política com meu pai, cujo o assunto era nosso novo rei. A discussão foi encerrada no momento em que Krem sacou sua arma. Meu querido pai estava desarmado” – Ruthye Marye Knoll (KING, Tom, Supergirl: A Mulher do Amanhã, 2021, p. 1).
Tom King, consagrado autor de Visão, Senhor Milagre e da série Batman, se junta à excelente artista brasileira, e indicada ao Prêmio Eisner, Bilquis Evely e, ao também brasileiro, o ótimo colorista Matheus “Mat” Lopes para nos entregar uma série limitada em oito edições envolvendo Kara Zor-El, a Supergirl, em uma jornada épica. O título foi publicado originalmente entre agosto de 2021 e abril de 2022.
Na história, Kara é uma jovem de 21 anos que após perceber que sua vida não tem sentido ou propósito, já que viu seu planeta destruído e foi enviada à Terra para proteger seu primo que acabou não precisando dela, decidiu perambular pelo universo sem rumo. Onde quer que ela vá, as pessoas só a veem pelas lentes da fama do Superman. Contudo, tudo muda até que uma garota alienígena chamada Ruthye Marye Knoll a procura para uma missão cruel, contratar a super-heroína como uma mercenária para matar o assassino de seu pai, um agente real chamado Krem dos Montes Amarelos. Com a morte de seu pai, seu mundo fora completamente destruído e os bandidos responsáveis ainda estão por aí. Ela quer vingança e, mesmo se a Supergirl não a ajudar, ainda assim o fará, custe o que custar. Então se inicia essa busca com uma kryptoniana e seu fiel cão, Krypto, e uma garota movida pela vingança e com o coração partido, rumo ao espaço em uma odisseia ambientada em um faroeste espacial que as abalará profundamente.
Apesar da personagem título, Supergirl: A Mulher do Amanhã tem como protagonista Ruthye Marye Knoll. Conforme explicado acima, toda a história é narrada sob o ponto de vista garota, a qual conta sobre seu passado, ou seja, sua busca pessoal por vingança com o auxílio de Supergirl.
Como de costume do escritor, a crônica traz uma desconstrução da personagem da Supergirl, colocando-a sob outra ótica. Tal desconstrução começa desde o nome da história que altera o título padrão da personagem “The Girl of Tomorrow” para “The Woman of Tomorrow”. Veja, o autor já nos indica que o que teremos pela frente é uma história sobre Supergirl enquanto uma mulher adulta, e é o que nos é apresentado ao longo das edições. Kara não é apenas uma kryptoniana super poderosa, mas, inicialmente, uma garota que perdeu seu mundo e não tem mais objetivos definidos, já que sua obrigação em proteger Kal-El, o Superman, é inócua. A personagem precisará passar por um processo de amadurecimento. A história decide então colocar Kara para perseguir pelo universo a pessoa que estragou seu aniversário de vinte e um anos, matou o pai de Ruthye e envenenou Krypto.
Ao longo de toda a história, Supergirl tenta provar a Ruthye que vingança não é o caminho o qual ela deve seguir, mesmo contra o sorrateiro representante do Rei, Krem dos Montes Amarelos. Com o desenvolvimento, as defesas emocionais de Ruthye são derrubadas paulatinamente e a influência de Kara se infiltra em sua personagem, trazendo lições que se tornam fundamentais para sua construção. Algo que Tom King faz especialmente bem é inverter suas caracterizações – e em A Mulher do Amanhã, a Supergirl é levada ao limite e quebrada repetidamente pela violência e morte deixadas pelo rastro de Krem, levando-a a desesperança e a escuridão se infiltrando em seu coração.
Conforme a leitura se desenvolve, apontado inclusive pelo próprio escritor, percebe-se que a história é uma grande homenagem ou mesmo pode ser considerado uma releitura ao clássico romance de faroeste Bravura Indômita (True Grit), livro escrito por Charles Portis originalmente publicado como livro (1968) e posteriormente adaptado ao cinema (1969 e 2010). Este conto de vingança com a jovem falante Mattie Ross e seus esforços para recrutar U.S. Marshall Rooster Cogburn para caçar o bandido que assassinou seu pai.
“Ninguém põe fé que uma menina de catorze anos possa sair de casa e viajar em pleno inverno para vingar a morte do pai, mas na época não pareceu tão estranho, embora eu deva reconhecer que isso não acontece todo dia. Eu tinha só catorze anos quando um covarde que atende pelo nome de Tom Chaney meteu uma bala em meu pai lá em Fort Smith, Arkansas, e roubou sua vida, seu cavalo e 150 dólares em dinheiro, mais duas moedas de ouro da Califórnia que ele levava em uma faixa na cintura” – Mattie Ross. (PORTIS, Charles, 2011, p. 7)
Os personagens-chave do livro dão lugar a versões correlatas do Universo DC, com alguns sendo completamente novos. No lugar de Mattie Ross temos a narradora e protagonista Ruthye Marye Knoll, no lugar do U.S. Marshall, Rooster Cogburn temos a Supergirl e no lugar do infame Tom Chaney temos Krem dos Montes Amarelos. A adaptação é clara mas perceber tal ponto, pode provocar um sentimento de aversão ao quadrinho, uma vez que o gibi pode acabar parecendo apenas um pastiche da obra original. A primeira vista, sem a devida leitura do quadrinho, a história pode parecer fora de tom ao Universo DC, ou pelo menos deslocada da personagem título. Contudo, é justamente nessa exegese que mora sua grandeza. Reproduzir uma história tão conceituada como Bravura Indômita poderia delimitar os rumos com os quais Tom King poderia elaborar a aventura de Ruthye e Kara, entretanto o autor abraça a essência do livro mesclando com a ampla mitologia da DC Comics.
Passado, presente e futuro são os principais determinantes desta história, e buscando um pouco da história dos quadrinhos, podemos notar o eco do gênero reverberando ao longo do que está sendo contado.
Convenientemente, a abordagem de King acaba destacando um aspecto clássico do gênero dos super-heróis que remonta ao seu início na década de 30. Primeiramente cabe destacar que quadrinhos de super-heróis nada mais são, entre outras bases, do que derivados dos quadrinhos pulp do começo do século XX, como heróis mascarados do faroeste como Zorro ou personagens de ficção científica e aventura como John Carter. Em segundo ponto, os super-heróis, ao contrário de outros arquétipos de gênero, possuem um perfil muito maleável de protagonistas, podendo se encaixar em qualquer situação e, portanto, em qualquer gênero. Tom King vem fazendo uso desse instrumento corriqueiramente e em Supergirl não poderia ser diferente. Os super-heróis americanos já passaram por diversas oscilações. Desde seu nascimento no final da década de 30, os quadrinhos aumentaram e diminuíram em popularidade, sendo um material extremamente corajoso em suas origens, até chegarmos no conservadorismo do Comics Code Authority, até passar pela revolução dos anos 80 com a Invasão Britânica. Essas origens sempre foram importantes para definir o tom das peças de super-heróis e Supergirl é um exemplo, não só deste resgate, como uma busca em ampliar as possibilidades para contar uma história.
Assim essa combinação entre uma história clássica de faroeste munida dos elementos mitológicos da DC Comics, nos entrega uma verdadeira epopeia que por vezes quase parece uma fábula. E ao falarmos do universo do Universo DC talvez seja onde a história mais brilha. As personagens passam por diversos e variados cenários, dos efeitos da luz do Sol Vermelho ao Sol Verde, encontrando piratas espaciais e planetas completamente hostis com forasteiros.
Ao colocar as duas personagens face a face, vemos duas garotas desoladas por um mundo que por vezes é sufocante e o qual fomenta o leitor a mergulhar no emocional de ambas. O trabalho conjunto dos três artistas traz uma abordagem sensível e tocante nos momentos certos, tanto pela narrativa de Ruthye que coloca Supergirl como uma grande super-heroína honrosa e dedicada, quanto pela própria visão da narradora ao encarar os muitos desafios propostos por aquele universo. King também propõe ao leitor a reflexão sobre nossos objetivos. Ao final, Ruthye tem uma escolha, assim como Kara; A história faz um ótimo trabalho ao provar os dois pontos de vista, permitindo que cada um deles enfrente seus próprios demônios, mantendo a perspectiva de Ruthye como a narradora, o que acaba por provocar um impacto emocional o qual a gente como leitor não esperaria.
Tom King é famoso por sua recorrente dupla com Mitch Gerards, entretanto, Supergirl – A Mulher do Amanhã, não poderia ter sido criada sem a incrível arte de Bilquis Evely, Matheus Lopes nas cores e as letras de Clayton Cowles. Evely desempenha um papel essencial ao transformar este quadrinho de muito bom em absolutamente incrível. A cada traço, que por vezes lembra muito quadrinhos europeus, ajuda a tecer este conto de vingança, honra e amizade entre Ruthye e Supergirl. A desenhista possui um senso artístico que não trai a natureza brutal e rápida de uma luta real. Seus traços ao determinar ações rápidas e que exijam velocidade transmitem com contundência a rapidez dos chutes, assim como o rosto retorcido de Krem torna os impactos ainda mais dolorosos quando as botas largas com sua face. Um grande trabalho que une o melhor de cada um dos artistas e criam uma obra determinante para a personagem.
Por fim, ao examinar as decisões que levam até esta narrativa, principalmente ao falarmos de uma franquia consagrada, a liberdade exercida por King nesta história nos deixa claro que o autor adota uma abordagem única e que busca manter a magia dos super-heróis viva. Apesar de um leve cinismo da história, Supergirl – A Mulher do Amanhã quer apenas nos presentear com o melhor que uma história em quadrinhos de super-heróis pode ser.
nossa eu amei😜